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sexta-feira, 21 de março de 2008

A escrita e o abismo



Escrevo.
E pronto.
Escrevo porque preciso.
Preciso porque estou tonto[1].

Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça.
Todo mundo tem sua cachaça.[...]
Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desespero da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso.
E meu verso me agrada[2]

Um jovem escritor, fascinado com a obra do italiano Cesare Garboli (1928-2004), escreve-lhe uma carta em que pergunta, afinal: “A que disciplina, a que criatividade poderia atribuir o [seu] trabalho? Como o tinha definido, [ele] que era o titular e o responsável? O trabalho de um crítico, ou de um escritor?”. Um tanto incomodado com a pergunta, Garboli sentia que “a classificação do [seu] escrito em qualquer um dos dois compartimentos os assassinaria infalivelmente”. Não poderia ser um crítico, posto que não se interessasse pelo debruçar sobre métodos ou técnicas. O vocábulo escritor, para ele, estava envolvido em demasia pela aura de romancista, palavra que evocava os grandes romances queridos, impossíveis para que ele pudesse se equiparar, impossibilitado que se sentia de criar um outro mundo como os romancistas o faziam.

Respondeu-lhe que se soubesse se era um crítico ou um escritor, não escreveria mais nem uma linha. “Sem sabê-lo, havia decretado que o princípio da [sua] literatura, ou, se preferisse, da [sua] vocação literária, se iniciava em um abismo de ignorância acerca da função e da natureza do [seu] trabalho”[3]. Maurice Blanchot[4], ao escrever sobre a literatura, também nos falava sobre o abismo, particularmente o abismo entre o Eu e o Outro, a diferença, o silêncio, o vazio da linguagem, como o que permite a experiência da própria linguagem. O Outro, esse desconhecido, é aquele que pretendemos alcançar na escritura. A in-finitude do abismo oferece, ao mesmo tempo, uma sensação de liberdade e vertigem. Pela literatura, aquele que as escreve busca esgueirar-se sobre esse abismo fascinante.

Explicando seu trabalho, Garboli confessa seu prazer de tocar o texto do outro, desmontá-lo, revolvê-lo, sentir “o pulso que ainda bate, o seu hálito de organismo ainda vivo e carnal, mas só pra ver como se articula, como respira”.

Escreve-se quando a alegria ou o desejo de viver não basta. É a triste novidade que havíamos aprendido no século passado. Escreve-se quando e porque se está doente. E se a literatura nasce da necessidade de liberar-se da paixão, se nasce da angústia, da obsessão, da frustração, do remorso, de que modo exercitar com maior proveito uma vocação diagnóstica, senão pela patologia de que é a maior vítima? (GARBOLI, 2002: 167).


Em seu livro Como um romance, o escritor ítalo-francês Daniel Pennac discorre sobre o ensino de literatura para adolescentes, dos erros que o professor incorre a partir da falsa urgência na obrigação de “ler”. Para o escritor, ler não se conjuga no imperativo, assim como sonhar; a obrigação da leitura os faz desgostar da própria leitura. E assim ele estabelece os dez direitos do leitor, explicando cada um detalhadamente. Entre os direitos[5], destaco aqui o primeiro, “O direito de não ler” e o nono e o décimo, respectivamente, “O direito de ler em voz alta” e “O direito de se calar”. O calar-se é formado desse abismo, essa angústia de saber impossível reescrever Flaubert, impossível reescrever Balzac, Joyce.
A função do literário, a função poética, é aquela que causa o estranhamento. Desse espanto, o silêncio, do silêncio, a vontade de desviar essa estranheza, apropriando-nos dela, recriando-a até torná-la nossa. Conhecer alguém não seria sabê-lo à nossa maneira? O desejo pelo corpo e do corpus alheio provém justamente por ser aquilo alheio, estranho, outro. Ler é abismar-se; escrever seria, portanto, um exercício de caminhar sobre o abismo, recriando outros e ao mesmo tempo em que nos deixamos entortar pelo verso alheio. Frustramo-nos sempre a dizer o que amamos, dizia Roland Barthes. É tentando alcançar aquela obra que nos deixa inebriado, que voltamo-nos para a escrita, e nos nossos erros e frustrações que persistimos escrevendo.

[1] Leminski
[2] Drummond
[3] Garboli – Pianura proibita, p. 165
[4] L’espace littéraire, 1955.

[5] Os direitos do leitor (Daniel Pennac)
  1. O direito de não ler
  2. O direito de pular páginas
  3. O direito de não terminar um livro
  4. O direito de reler
  5. O direito de ler qualquer coisa
  6. O direito ao bovarysmo (doença textualmente transmissível)
  7. O direito de ler em qualquer lugar
  8. O direito de ler uma frase aqui e outra ali
  9. O direito de ler em voz alta
  10. O direito de calar
UPDATE (26/11/08) : vi esse livro sendo vendido em banca de jornal, traduzido, por 12 paus. É um belo livro para o professor que se pergunta "como" motivar o aluno a ler...

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