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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

vestida de Laerte



Em O Som ao Redor, a "doméstica" do seu Francisco avisa que precisa levar os ternos dele na lavanderia da rua. "Vai e volta", ele responde à mulher magricela e vestindo roupas largas da faxina, que estendia, enérgica, o cabide de roupas, ainda que sem olhar muito de frente para o patrão.
E ela corre para seu quarto, coloca a minissaia que revela as coxas grossas, o top que nos faz descobrir seus seios e troca o tênis pela sandália, "biquíni do pé" (© Stêvz); o rosto se transforma e a empregada, de cara emburrada em sua primeira cena, tira uma garota de dentro de seu enfadonho uniforme pálido, uma mulher desejante. Sem o uniforme, ainda adota as marcas de classe, do vestuário barato das meninas de qualquer periferia brasileira (periferia aqui no sentido do que não é centro, do que não é poder). A mulher séria - e talvez sem graça - de uniforme tem mais brilho nos olhos verdes, ela chega a ser bonita, o rosto apagado ganha juvenilidade e as marcas de espinhas ganham novo signo. 
"Vai e volta".

***

Lá se vão mais de 50 anos que Roland Barthes publicou seu Sistema da Moda, e já sabemos como a roupa comunica; nem precisamos repetir Foucault pra lembrar que os uniformes domesticam o corpo. Nas conversas mais recentes sobre o se vestir e se portar, o debate ganha cada vez mais camadas no corpo e no discurso de gente cujo desejo é de transbordar o "ou-isso-ou-aquilo" da ideologia. 
Derrida usava o termo "indecidível" para indicar certas palavras que são isso e são aquilo, são isso ou aquilo e que pertubam o discurso centralizador do poder. Porque o poder, para ser único, precisa se dizer centro, e pra ser centro, precisa dizer o que não é poder. Sendo assim, o centro é tudo o que não é periferia, a elite veste a roupa que a ralé não pode usar, enquanto a classemediasofre tentando melhorar o guarda-roupa. E, assim, se o poder está nas mãos de homens de pau duro e desejantes, não pode haver no corpo masculino marcas que indiquem sua disposição a ser consumido pelo Outro: a mulher, sim, precisa denotar em seu corpo essa disponibilidade ao assédio de seu consumidor. Butler é quem vai comentar outras feministas que perceberam isso: o corpo masculino seria o "neutro", enquanto o feminino ganha "desinências de gênero". 

Em frente ao espelho, nus, temos as marcas do sexo, à elas vamos adicionando a terminação de classe e as tais desinências de gênero (sem contar os sotaques regionais, as desinências de tempo e de ocasião). E o nosso morfema-corpo integrará diferentes sintaxes e comporá tantos discursos, que um software poderoso de criação de personagens virtuais nunca conseguiria dar conta de prever as infinitas possibilidades de ser gente nesse mundo.

As gramáticas normativas dos discursos de poder preveem formações rígidas, pior que um CD demo de The Sims. E aí, quando nosso corpo se faz portemanteau, palavra-valise, o corpo vira poesia. O poético ou o literário, não é aquilo que transborda e subverte as estruturas? O corpo que se transforma e recusa as funções socialmente impostas, é performance transformada em poesia.

Trans e travestis que chocaram e enfrentaram tanta gente para vestir como se queria, para não se sujeitar a vontades do único, do banal, não libertaram apenas um desejo seu, mas de outras como elas e eles, de homens e mulheres também que não precisam ser apenas homens ou mulheres. Isso é dizer que não é apenas o corpo feminino que pode ser objeto de desejo, e que até o corpo feminino pode, às vezes, ser apenas corpo que trabalha, corpo que alimenta, corpo que deseja, corpo que se diverte sem, necessariamente, ser fetiche. E pode ser, também, quando quiser.

A atitude delas e deles, a atitude que pessoas como Laerte Coutinho vêm adotando, fala não apenas de um desejo pessoal de transformação, mas integra toda essa conversa de gênero, sexualidade, classe social, poderes. Atitudes subversivas mesmo que, muitas vezes, sem uma consciência política à flor da pele, tais como pessoas que nem Laerte vêm nos apresentando. Atitudes corajosas e difíceis, dolorosas até. Gente que apanha na rua porque se veste "fora" da "heteronormatividade", ou "metronormatividade", visto que são os grandes centros urbanos (o não periférico) que vêm impondo seus discursos, seus hábitos. 

Laerte vem me fazendo pensar essas coisas há um tempo, e lembro com orgulho quando acompanhava, de longe, a cor do sapato, seu cabelo que crescia, os brincos de pérola que surgiam, a maquiagem e a minissaia. Tinha assistido a primeira vez ao vivo em um evento em que, por discurso, ele recitou uns versinhos. Esse deslocar, esse poético, me impressiona até hoje. A visibilidade que vem obtendo sobre essa desconformidade entre o vestuário e as os quereres emociona. Por isso e tanta coisa, ainda não consigo explicar o que foi para mim ter sido convidada por ela a representá-la no 11º Prêmio Arco-Íris de Direitos Humanos, no dia 29 de janeiro, em palco da Casa de Cultura Laura Alvim. Recitei seus versos homenageando a juventude que ainda enfrenta preconceitos de todos os lados para poder vestir e amar quem quiser. Pus um vestido que roubei da mãe, meu único par de saltos, por coincidência em um vermelho dorothyano*, e representei aquele aquela que ousou bagunçar as representações. 
E aqui, venho tentando, escrevendo nessas linhas, um esboço de agradecimento, não só pela honraria do estar em nome de, mas por tudo, tudo-tudo, a gente sabe que Laerte merece.  


*ver Friend of Dorothy no Google

Pode me encontrar ali na foto pelos pés. 

Um comentário:

Anônimo disse...

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