Um ovo flutuava no rio Uspanapa.
Caridad mexia a água, querendo apanhá-lo; e tanto se agachou que acabou caindo de cabeça no fundo lodoso.
Depois de muito se agitar, emergiu ensopada e sem o ovo, botando água e raiva pelos sete buracos da cabeça. Quando se ergueu na margem, bateu sem querer na ramagem; e o ovo, que aparecia no rio mas estava entre os galhos, caiu aos seus pés.
Caridad sentou-se.
Ao calor de seu corpo, o ovo se quebrou e Andâncio nasceu e chorou.
Serpenteava a língua. Caridad lambia os beiços contemplando o menino que crescia:
– É meu, é meu - dizia.
Andâncio sentia gratidão, porque afinal ela o havia nascido; mas assim que Caridad saía de casa, o menino confiava suas preocupações ao camundongo:
- Minha mãe quer me comer.
E o camundongo movia a cabeça:
- Todas as mães têm essa mania.
[...]
Eduardo Galeano, "História do menino que se salvou do amor de mãe e outros perigos" (As palavras andantes)
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domingo, 12 de agosto de 2012
História do menino que se salvou do amor de mãe e outros perigos
sábado, 12 de maio de 2012
quinta-feira, 5 de janeiro de 2012
Calvino e o Corriere dei Piccolli
Nos anos vinte, o Corriere dei Piccolli publicava na Itália os mais conhecidos comics americanos da época: Happy Hooligan, os Katzenjammer Kids, Felix the Cat, Maggie and Jiggs, todos rebatizados com nomes italianos. E havia também séries italianas, algumas de ótima qualidade quanto ao bom gosto gráfico e o estilo da época. Por esse tempo, ainda não havia entrado em uso na Itália o sistema de se escrever as frases dos diálogos nos balões (que só começou nos anos trinta, quando Mickey Mouse foi importando); o Corriere dei Piccolli redesenhava os quadrinhos sem os balões, que eram substituídos por dois ou quatro versos rimados em baixo de cada quadrinho. Mas eu, que ainda não sabia ler, passava otimamente sem essas palavras, já que me bastavam as figuras. Não largava aquelas revistinhas que minha mãe havia começado a comprar e a colecionar ainda antes de eu nascer e que mandava encadernar a cada ano. Passava horas percorrendo os quadrinhos de cada série de um número a outro, contando para mim mesmo mentalmente as histórias cujas cenas interpretava cada vez de maneira diferente, inventando variantes, fundindo episódios isolados em uma história mais ampla, descobrindo, isolando e coordenando as constantes de cada série, contaminando uma série com outra, imaginando novas séries em que personagens secundários se tornavam protagonistas.
Quando aprendi a ler, a vantagem que me adveio foi mínima: aqueles versos simplórios de rimas emparelhadas não forneciam informações inspiradoras; no mais das vezes eram interpretações da história, de orelhada, tais quais as minhas; estava claro que o versejador não tinha a mínima ideia do que poderia estar escrito nos balõezinhos do original, seja porque não soubesse inglês ou porque trabalhasse com os quadrinhos já redesenhados e tornados mudos. Seja como for, eu preferia ignorar as linhas escritas e continuar na minha ocupação favorita de fantasiar em cima das figuras, imaginando a continuação.
Esse hábito certamente retardou minha capacidade de concentrar-me sobre a palavra escrita (a atenção necessária para a leitura só a fui adquirir mais tarde, e com esforço), mas a leitura das figurinhas sem palavras foi para mim sem dúvida uma escola de fabulação, de estilização, de composição da imagem.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Seria possível, talvez, escrever um estudo estatístico sobre a influência do http://www.corriere.it/Piccoli/home.shtml na literatura contemporânea italiana. Segunda citação ao jornalzinho para crianças que leio essa semana, antes Eco.
quinta-feira, 29 de setembro de 2011
mokeït
Ia scanear essas imagens, mas, na ansiedade, decidi apenas fotografá-las.
São desenhos de Mokeït (Frederic Van Linden), que queria fazer quadrinhos abstratos. Não sei, ao certo, se são esses os quadrinhos que ele quis fazer, mas são referências apresentadas sobre ele ao longo de entrevista sobre o assunto na éprouvette 3, revista de estudos sobre quadrinhos, em quadrinhos, com quadrinistas da L'Association, que ficou nesse terceiro número, em 2007.
A questão que se põe é: seriam esses desenhos realmente quadrinhos? Haveria, nos quadrinhos, o imperativo de ser texto narrativo, ou poderia cair na tentação do poético?
Mais qu'est-ce que c'est beau !
São desenhos de Mokeït (Frederic Van Linden), que queria fazer quadrinhos abstratos. Não sei, ao certo, se são esses os quadrinhos que ele quis fazer, mas são referências apresentadas sobre ele ao longo de entrevista sobre o assunto na éprouvette 3, revista de estudos sobre quadrinhos, em quadrinhos, com quadrinistas da L'Association, que ficou nesse terceiro número, em 2007.
A questão que se põe é: seriam esses desenhos realmente quadrinhos? Haveria, nos quadrinhos, o imperativo de ser texto narrativo, ou poderia cair na tentação do poético?
Mais qu'est-ce que c'est beau !
sábado, 30 de julho de 2011
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
Papapá
Pam-pam-pam-pam, pam-pam-pam-PAM!; Param-pam-pam; Pam-pam-pam-pam, pam-pam, pam, pampam, parampam-pampamrampampampampam...
Tantas músicas ficam papapam em nossas cabeças, sem precisar explicitar isso em suas letras. O pam-pam-pam entra sem pedir, as vezes tantam, como preferir o freguês.
Mas há aquelas músicas que valorizam o pampam fonético. Em homenagem a essas preciosidades sonoras, convido a todos a votarem nos melhores pampampans de todos os tempos.
Estou colecionando músicas assim e quero ajuda. Me dá um Pá que troco por Foux-Du-Fa-Fa.
É só clicar nas músicas, gente! Os vídeos/links estão todos aí, nas melhores versões que encontrei.
1. Beach Boys: Wouldn’t it be Nice
2. Beatles: Lady Madonna
3. Bluemink: Good Morning Freedom
4. Carnaby Street Pop Orchestra and Choir: Dr Jeckle and Hyde Park
5. Cidinho e Doca: Rap das Armas
6. Engenheiros do Hawaii: O Papa é Pop
7. Ivan Graziani: Lugano addio
8. Jackson 5: ABC
9. Joan Jett and the Blackhearts: Little Drummer Boy (e na versão de Bing Crosby e David Bowie!)
10. Monade: Wash and Dance
11. Mozart: Papageno
12. Mundo Livre S.A.: Expressão Exata
13. Paralamas do Sucesso: Busca a vida
14. Raimundos: Palhas do Coqueiro
15. Rita Pavone: Viva La Pappa al Pomodoro
16. Stereolab: Miss Modular
17. Strawberry Whiplash: Who’s In Your Dreams
18. Suzanne Cleary & Peter Harding: We no Speak Americano
19. Teenage Fanclub: I Need a Direction
20. The Housemartins: Build
21. The Jesus and Mary Chain: Cut Dead
22. The Kinks: David Watts (ok, é fa-fa-fa-fafa)
23. The Trashman: Surfin Bird (sabia?)
24. Velvet Underground: Who Loves the Sun
25. Yo La Tengo: Tom Courtenay
26. Yo La Tengo: You Can Have It All
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
germinal
"Sob os raios inflamados do astro-rei, por aquela manhã de juventude, era daquele rumor que a campina estava grávida. Surgiam homens; um exército negro, vingador, que germinava lentamente nos sulcos da terra, nascendo para as colheitas do século, e cuja germinação não tardaria a fazer rebentar a terra".
quarta-feira, 30 de junho de 2010
benjamin
"Podemos agora tomar distância para avaliar o conjunto. Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do "atual". A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra. A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno grupo dos poderosos, que sabe Deus não são mais humanos que os outros; na maioria bárbaros, mas não no bom sentido. Porém os outros precisam instalar-se, de novo e com poucos meios. São solidários dos homens que fizeram do novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia. Em seus edifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali um som bárbaro. Perfeito. No meio tempo, possa o indivíduo dar um pouco de humanidade àquela massa, que um dia talvez retribua com juros e com os juros dos juros".(O texto completo aqui)
sexta-feira, 11 de junho de 2010
ainda sobre véus e cores
Estava quase saindo um ensaião sobre ideologia, etnocentrismo, e tal. Mas, por melhor que fosse minha intenção, eu não posso falar em nome dessas mulheres de niqab.
Perguntei a uma amiga muçulmana, de Alexandria, o que ela pensava disso. O niqab, que não é obrigatório (e também não o é a burca, que são, aliás, diferentes - a segunda é bem mais ostensiva), é usado por mulheres que "gostam de usá-lo, ou porque elas querem que só o esposo as veja, ou porque são muito piedosas e acreditam que na época de Maomé era assim, ou ainda há algumas que querem se esconder e outras ainda que são muito feias".
Minha amiga, que usa véus coloridíssimos sobre os cabelos bem pretos, também não pode falar por essas mulheres. Elas têm que ser ouvidas, e é disso que reclamo. Num país tão democrático quanto a França, essas que querem (querem porque protestam por ele, foram às ruas por ele e ainda são acusadas de "manifestantes", agitadoras... e elas podem, sim, mostrar o rosto quando lhe pedem a identidade) usar os véus não têm direito de dizer o porque, não há conversa.
Por que houve aumento de mulheres usando o niqab em um país democrático? "Temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza". O apagamento sob o niqab é extremamente simbólico. Por que essas mulheres querem desaparecer sob essa máscara? Também temos o direito " a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. Não é uma lei que vai dá-las "liberdade". Muito menos a minha roupa ocidental, que não é nem nunca será sinônimo de liberdade, a mínima liberdade que seja. Pelo contrário, leis só provocam o recrudescimento do sentimento de margem de todo um povo. Vamos parar por aqui, eu disse que não ia fazer um ensaião sobre ideologia, etnocentrismo, logocentrismo etc. e tal. O Tariq Ramadan fala muito melhor sobre isso no vídeo que postei aqui.
***
Uma estudante da prestigiada Escola Normal Superior de Paris (ENS) foi visitar seu irmão na prisão, ele tinha participado de uma manifestação pela Palestina. Ela não pôde voltar para casa, sendo detida e presa imediatamente, sem ter tido qualquer relação com a manifestação. Graças à diretora da ENS, Monique Canto-Sperber, a aluna foi solta, dois dias depois.
***
Tenho preparado materiais didáticos interativos de francês. Aí tenho que pesquisar livros didáticos. Sempre me irrito na hora de ensinar descrição física. Não há nenhum negro representado, muito menos árabe. A única vez que vi um "bronzé" (bronzeado, mas também pode ser sinônimo pra moreno) era um surfista loiro, e a descrição era de um suspeito de um crime...
UPDATE
Minha caríssima Cyn respondeu com um texto muito bom, criticando o que eu disse aqui.
Concordo com ela em boa parte, discordo da nossa "tarefa civilizatória". Sou pelo método freiriano, antes de tudo: "Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão". É preciso um trabalho de educação, mesmo, pedagogia do oprimido na veia, e isso quer dizer comunhão, integração, que não é a mesma coisa que tornar todos iguais. Isso é impossível e etnocêntrico, como se tudo em nossa cultura fosse superior à deles. A diplomacia brasileira tem conseguido avançar, inclusive, pela abertura ao diálogo, e é assim que a gente se entende.
Pelo menos a Marjane, Chaddord Djavam, outra iraniana nacionalizada francesa, e Ayaan vieram de classe média, com um acesso maior à cultura em geral, enquanto boa parte do povo vive ainda na ignorância, na pobreza. Elas tiveram a oportunidade de mudar, de sair desse meio. Continuo discordando que uma lei vá solucionar isso.
E compará-las com membros da KKK é golpe baixo: eles escondem o rosto pra matar.
Perguntei a uma amiga muçulmana, de Alexandria, o que ela pensava disso. O niqab, que não é obrigatório (e também não o é a burca, que são, aliás, diferentes - a segunda é bem mais ostensiva), é usado por mulheres que "gostam de usá-lo, ou porque elas querem que só o esposo as veja, ou porque são muito piedosas e acreditam que na época de Maomé era assim, ou ainda há algumas que querem se esconder e outras ainda que são muito feias".
Minha amiga, que usa véus coloridíssimos sobre os cabelos bem pretos, também não pode falar por essas mulheres. Elas têm que ser ouvidas, e é disso que reclamo. Num país tão democrático quanto a França, essas que querem (querem porque protestam por ele, foram às ruas por ele e ainda são acusadas de "manifestantes", agitadoras... e elas podem, sim, mostrar o rosto quando lhe pedem a identidade) usar os véus não têm direito de dizer o porque, não há conversa.
Por que houve aumento de mulheres usando o niqab em um país democrático? "Temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza". O apagamento sob o niqab é extremamente simbólico. Por que essas mulheres querem desaparecer sob essa máscara? Também temos o direito " a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. Não é uma lei que vai dá-las "liberdade". Muito menos a minha roupa ocidental, que não é nem nunca será sinônimo de liberdade, a mínima liberdade que seja. Pelo contrário, leis só provocam o recrudescimento do sentimento de margem de todo um povo. Vamos parar por aqui, eu disse que não ia fazer um ensaião sobre ideologia, etnocentrismo, logocentrismo etc. e tal. O Tariq Ramadan fala muito melhor sobre isso no vídeo que postei aqui.
A Rede Globo mostrou, no Bom Dia Brasil de ontem, bonitas imagens de mulheres do Afeganistão com os rostos descobertos, livres da burca. Belos rostos, olhos impressionantes. Não se negam nem se oferecem: olham, sustentam o olhar. Nos comentários, Leilane Neubart e Renato Machado acentuaram a liberdade de ser, demonstrada naqueles olhares, e a perspectiva de vida nova para as mulheres do Afeganistão com a dispensa da burca.
Em parte é verdade. Vale para as mulheres de algumas regiões do país, principalmente do Norte. Mas uma informação importante está faltando em todas as reportagens e comentários: aquela camuflagem de mulher, a burca, não foi inventada pelos talibans. Existe há séculos nas comunidades da etnia pashtum. Os jornalistas que cobrem a guerra não se perguntam, quando encontram mulheres usando ainda a burca nas regiões 'libertadas': por que continuam a usá-la? Os repórteres não buscam no passado a explicação.
Apresentadores e comentaristas também não se perguntam. O fato mais ostensivo, a 'libertação', ocupa todas as preocupações. Quando os talibans (de grande maioria pashtum, ignorantes, iletrados, fundamentalistas) emergiram como conquistadores dentre as várias milícias armadas que derrotaram os russos no Afeganistão, impuseram esse hábito às mulheres do Norte, onde está Cabul. Estas, sim, foram agora libertadas da burca. As outras seguem seu costume, ao qual só renunciarão se a história torná-lo dispensável. É preciso saber que a cultura que gerou o Taliban continua seu ciclo."
***
Uma estudante da prestigiada Escola Normal Superior de Paris (ENS) foi visitar seu irmão na prisão, ele tinha participado de uma manifestação pela Palestina. Ela não pôde voltar para casa, sendo detida e presa imediatamente, sem ter tido qualquer relação com a manifestação. Graças à diretora da ENS, Monique Canto-Sperber, a aluna foi solta, dois dias depois.
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Tenho preparado materiais didáticos interativos de francês. Aí tenho que pesquisar livros didáticos. Sempre me irrito na hora de ensinar descrição física. Não há nenhum negro representado, muito menos árabe. A única vez que vi um "bronzé" (bronzeado, mas também pode ser sinônimo pra moreno) era um surfista loiro, e a descrição era de um suspeito de um crime...
UPDATE
Minha caríssima Cyn respondeu com um texto muito bom, criticando o que eu disse aqui.
Concordo com ela em boa parte, discordo da nossa "tarefa civilizatória". Sou pelo método freiriano, antes de tudo: "Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão". É preciso um trabalho de educação, mesmo, pedagogia do oprimido na veia, e isso quer dizer comunhão, integração, que não é a mesma coisa que tornar todos iguais. Isso é impossível e etnocêntrico, como se tudo em nossa cultura fosse superior à deles. A diplomacia brasileira tem conseguido avançar, inclusive, pela abertura ao diálogo, e é assim que a gente se entende.
Pelo menos a Marjane, Chaddord Djavam, outra iraniana nacionalizada francesa, e Ayaan vieram de classe média, com um acesso maior à cultura em geral, enquanto boa parte do povo vive ainda na ignorância, na pobreza. Elas tiveram a oportunidade de mudar, de sair desse meio. Continuo discordando que uma lei vá solucionar isso.
E compará-las com membros da KKK é golpe baixo: eles escondem o rosto pra matar.
sexta-feira, 30 de abril de 2010
Eclesiastes 3, 1-8
"Pego livros na estante como se fosse buscar um vinho na adega"
Sama, sobre a necessidade de ter um tempo certo para degustar um bom livro.
Sama, sobre a necessidade de ter um tempo certo para degustar um bom livro.
quarta-feira, 10 de março de 2010
It's a wonderful life
Dear landlord,
Please don’t put a price on my soul.
My burden is heavy,
My dreams are beyond control.
(Bob Dylan)
It's a Wonderful life, ou o nosso A Felicidade Não se Compra, clássico de Natal de 1946, é daqueles filmes retomados em diversos outros, citados, parodiados. O anjo que vem do céu, a vida revista, o que aconteceria se você não existisse, o mal encarnado em um rico avarento e velho. Essa última referência já é mais antiga, a dickensoniana é a mais evidente. Coisa bem século XIX, Revolução Industrial com cidades crescendo e número de gente sem emprego idem.
O velho Scrooge de Frank Capra se chama Henry Potter (Lionel Barrymore), grande proprietário, detém boa parte dos empreendimentos da pequena Bedford Falls. Lucra até com alugueis dos sujos cortiços onde mora a população pobre da cidade. Nosso herói, George Bailey, é interpretado pelo herói dos heróis-sem-superpoderes-mas-com-dignidade, James Stewart. Esse Hamlet é assombrado pelo fantasma da herança de seu pai, que o condena a tomar seu lugar na Bailey Buildind and Loan Association, fazendo-o se desfazer dos sonhos de partir da entediante cidadezinha.
O mal encarnado, Potter, quer apenas dominar a cidade, e tenta fazer com que os Bailey desistam de seu negócio. A luta de George e família é pela casa própria para todos os cidadãos de Bedford Falls. E pelo emprego, também. Ao saber que um amigo queria abrir uma grande indústria de fabricação de plástico a partir da soja (!), ideia mesma do George (mas parece que já tinham pensado nisso, mas talvez só agora dê certo), sugere a esse amigo de empreendê-la em sua cidadezinha, onde o desemprego fazia muitas vítimas desde a Grande Depressão.
Bedford Falls ganha um conjunto habitacional com belas casinhas que todos pagarão em leves prestações; os Bailey não querem lucro, o lucro nojento do Potter. Esse, que incorpora o grande mal, o banqueiro, quer porque quer destruir a felicidade dos outros; obviamente, o que ele não pode comprar. Simples assim.
Não é tão simples assim no nosso mundo, evidentemente. Em um diálogo que me pareceu surreal, um funcionário de Potter lhe dizia: "Eles estão construindo belas casinhas no parque onde caçávamos", e sugeria que o chefe fizesse algo para impedi-los. Ali, havia uma divisão clara entre bem e mal. Mas ontem ouvi no rádio uma frase surreal assim. Em comentário ao fato da prefeitura do Rio estar gastando verbas públicas na recuperação de conjuntos habitacionais (projeto Conjunto Maravilha), o jornalista faz uma "reflexão", que joga para o público: "'Nós' pagamos condomínio para fazer reforma em 'nossos prédios". É, cara pálida, você provavelmente teme que roubem os impostos que "nós" pagamos para dar àqueles que não pagam nada. Também deve olhar com nojo as mulheres, crianças e velhos que moram nas calçadas do teu trabalho. Que "nós" são esses? Há muitos outros "nós" nessa cidade, e poucos se cruzam.Os 600 moradores do Amarelinho, o tal conjunto a ser reformado, provavelmente, não pagavam condomínio.
Quantos brasileiros podem fazê-lo? Dos 57 milhões de domicílios brasileiros, apenas 17% são alugados. No entanto, quem mora na rua não participa das estatísticas.
Hoje, um choque de ordem no Leme já demoliu duas casas irregulares. Para onde vão seus moradores?
Se formos otimistas, eles encontrarão algum conjunto social na periferia, engrossando a massa que se locomove com dificuldade todas as manhãs nos ônibus, trens, metrô.
E o que fazer dos espaços vazios do centro da cidade, dos prédios abandonados? Esperar que seu preço caia o suficiente para economizar numa bela reforma e, assim, transformar em bairro cool?
Silvio Caccia Bava, no editorial do Le Monde Diplomatique Brasil desse mês, lembra que soluções para melhoria das cidades passam, justamente, pela erradicação da pobreza, que envolve moradias dignas para todos, acesso à mobilidade. E que há soluções bem possíveis, dependendo apenas da vontade política. Afinal, 13 trilhões foram empregados para salvar o sistema financeiro internacional, o que teria sido suficiente para uma revolução.
O mundo, irreversivelmente urbano, irreversivelmente humano, continua dependendo de poucos Potters.
"Se morar é um direito, ocupar é dever"
quinta-feira, 4 de março de 2010
do Milton Santos
Os transportes e as comunicações conheceram grandes avanços nos países subdesenvolvidos - por exemplo, os processos maiores são obtidos através do ônibus e do automóvel e os fluxos podem intensificar-se graças à sua maior flexibilidade [...] De modo geral, o preço do transporte aumenta menos que o dos demais fatores de produção, e a redução do custo das viagens possibilita às pessoas escolher onde adquirir bens e serviços, que frequentemente vão buscar em lugares mais distantes, mas onde os preços praticados oferecem maiores atrativos. Naturalmente, os que fazem essas viagens de consumação são os que dispõem de mobilidade. Essa mobilidade no território é, aliás, negada aos que dispõem de menos rendas. [...]
Quem não pode locomover-se periodicamente, vai e fica.
(Milton Santos, Metamorfoses do espaço habitado, pp 62-63. Grifo meu). Eu tinha comentado mais ou menos isso aqui.
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