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domingo, 16 de novembro de 2008

"eu te amo" e o celular

"eu-te-amo", já dizia RB, é uma palavra vazia. o sentido depende do ato em que se fala. eu-te-amo não quer dizer nada.
já falei sobre celulares aqui, talvez já tenha falado sobre eu-te-amos, não lembro.

no caderno +! de hoje, há um belíssimo texto de Johnatan Frazen sobre celulares e a poluição sonora do eu-te-amo no espaço público...

peguei uns trechinhos:

Cigarro e celular

[...]

Há dez anos, Nova York (onde vivo) era repleta de espaços públicos mantidos coletivamente em que os cidadãos demonstravam respeito por sua comunidade, não a obrigando a tomar conhecimento de suas vidas amorosas banais.
O mundo de dez anos atrás ainda não tinha sido totalmente dominado pela verborréia. Ainda era possível ver o uso de Nokias como uma ostentação ou afetação de ricos. Ou, sob uma óptica mais tolerante, como um mal, uma deficiência ou uma muleta. Afinal, na Nova York do final dos anos 1990, a transmissão de cultura da nicotina para cultura do celular ainda estava em processo. Num dia o volume no bolso da camisa era um maço de Marlboro; no dia seguinte, era um
Motorola.

Um dia a garota bonita, vulnerável por estar desacompanhada, estava ocupando suas mãos, sua boca e sua atenção com um cigarro; no dia seguinte, ocupava-o com uma conversa muito importante com uma pessoa que não era você.
Num dia uma multidão se reunia em torno do primeiro adolescente no playground a carregar um maço de cigarros; no dia seguinte, se reunia em volta do primeiro a ostentar uma tela colorida.

Num dia, os viajantes acendiam seus isqueiros assim que desciam do avião; no dia seguinte, estavam discando números em seus celulares.

Dependências de um maço de cigarros por dia viraram contas mensais de US$ 100. A poluição por fumaça virou poluição sonora.

E, apesar de o fator irritante ter mudado da noite para o dia, o sofrimento imposto a uma maioria contida por uma minoria compulsiva, em restaurantes, aeroportos e outros espaços públicos, continuou a ser uma constante estranha.
Em 1998, pouco depois de abandonar o cigarro, eu ficava sentado no metrô, observando outros passageiros abrirem e fecharem seus celulares, nervosos, ou mastigarem as antenas (que lembravam tetas e que todos os telefones tinham à época) ou então simplesmente segurarem firme seus telefones, como se estivessem agarrando as mãos de suas mães, e sentia algo como
compaixão por eles.

[...]

Fila do caixa

Uma praga nacional de hoje que só vem se agravando é a do cliente que continua absorto num telefonema enquanto efetua uma compra em um caixa de um supermercado ou em uma loja.
A combinação típica em meu bairro, em Manhattan, envolve uma jovem branca, recém-graduada de alguma escola cara, e uma mulher local, negra ou hispânica, de aproximadamente a mesma idade, mas que teve menos vantagens na vida.
É claro que é uma vaidade liberal esperar que a caixa interaja com você ou aprecie as exigências de seu trabalho; ela é autorizada a tratá-lo com tédio ou indiferença; na pior das hipóteses, é uma atitude pouco profissional da parte dela.
Mas isso não alivia você de sua própria obrigação moral de reconhecer a existência dela como pessoa.

E, embora seja verdade que algumas caixas e balconistas pareçam não se incomodar em serem ignoradas, uma porcentagem notavelmente maior delas se irrita, se aborrece ou se entristece visivelmente quando uma cliente se mostra incapaz de afastar-se do celular para lhe dedicar pelo menos dois segundos de interação direta.
Desnecessário dizer que a própria infratora, como o motorista tagarela na rodovia, ignora alegremente o fato de estar irritando alguém.
E, em minha experiência, quanto mais longa a fila que se forma atrás dela, maior é a probabilidade de ela pagar sua compra de US$ 1,98 com cartão de crédito.
Existe, é claro, uma conseqüência social positiva do agravamento desses maus comportamentos. A noção abstrata de espaços públicos civilizados como recursos raros que merecem ser defendidos pode estar praticamente morta, mas ainda é possível encontrar consolo nas comunidades momentâneas e pontuais de sofredores criadas por esses maus
comportamentos.

Olhar pela janela de seu carro e ver o vapor metafórico saindo dos ouvidos de outro motorista ou encontrar o olhar da caixa irritada do supermercado e acenar a cabeça, solidarizando-se com ele -essas coisas fazem a gente sentir-se menos só.
É por essa razão que, de todas as variedades cada vez piores de mau comportamento ao celular, aquela que mais profundamente me irrita é a que, pelo fato de não fazer vítimas evidentes, aparentemente não irrita a mais ninguém.
Refiro-me ao hábito -incomum há dez anos, mas hoje onipresente- de encerrar conversas ao celular gritando "amo você!". Ou, ainda mais opressivo e exasperador, "eu te amo!". Isso faz sentir vontade de me mudar para a China, onde não entendo a língua que as pessoas falam. Me dá vontade de gritar.

Imposição pessoal

O componente celular de minha irritação é simples e direto.
Simplesmente não quero -enquanto estou comprando meias na Gap ou na fila para comprar um ingresso e me ocupando com meus pensamentos pessoais ou tentando ler um romance num avião quando o embarque ainda não foi encerrado- ser arrastado em minha imaginação para o mundo pegajoso da vida doméstica de algum ser humano próximo.
A própria essência do que é tão desagradável no celular como fenômeno social é que ele possibilita e incentiva o ato de impor o pessoal e individual ao público e comunal.
E não existe declaração de mais alto calibre que "eu te amo" -não há nada pior que um indivíduo possa impor a um espaço público comum. Mesmo "vá à merda, imbecil!" é menos invasivo, na medida em que é o tipo de coisa que pessoas iradas às vezes gritam em público e que pode igualmente bem ser dirigido a um estranho.
[...]

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