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quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Calvino e o Corriere dei Piccolli

Nos anos vinte, o Corriere dei Piccolli publicava na Itália os mais conhecidos comics americanos da época: Happy Hooligan, os Katzenjammer Kids, Felix the Cat, Maggie and Jiggs, todos rebatizados com nomes italianos. E havia também séries italianas, algumas de ótima qualidade quanto ao bom gosto gráfico e o estilo da época. Por esse tempo, ainda não havia entrado em uso na Itália o sistema de se escrever as frases dos diálogos nos balões (que só começou nos anos trinta, quando Mickey Mouse foi importando); o Corriere dei Piccolli redesenhava os quadrinhos sem os balões, que eram substituídos por dois ou quatro versos rimados em baixo de cada quadrinho. Mas eu, que ainda não sabia ler, passava otimamente sem essas palavras, já que me bastavam as figuras. Não largava aquelas revistinhas que minha mãe havia começado a comprar e a colecionar ainda antes de eu nascer e que mandava encadernar a cada ano. Passava horas percorrendo os quadrinhos de cada série de um número a outro, contando para mim mesmo mentalmente as histórias cujas cenas interpretava cada vez de maneira diferente, inventando variantes, fundindo episódios isolados em uma história mais ampla, descobrindo, isolando e coordenando as constantes de cada série, contaminando uma série com outra, imaginando novas séries em que personagens secundários se tornavam protagonistas.
Quando aprendi a ler, a vantagem que me adveio foi mínima: aqueles versos simplórios de rimas emparelhadas não forneciam informações inspiradoras; no mais das vezes eram interpretações da história, de orelhada, tais quais as minhas; estava claro que o versejador não tinha a mínima ideia do que poderia estar escrito nos balõezinhos do original, seja porque não soubesse inglês ou porque trabalhasse com os quadrinhos já redesenhados e tornados mudos. Seja como for, eu preferia ignorar as linhas escritas e continuar na minha ocupação favorita de fantasiar em cima das figuras, imaginando a continuação. 
Esse hábito certamente retardou minha capacidade de concentrar-me sobre a palavra escrita (a atenção necessária para a leitura só a fui adquirir mais tarde, e com esforço), mas a leitura das figurinhas sem palavras foi para mim sem dúvida uma escola de fabulação, de estilização, de composição da imagem. 

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.



Seria possível, talvez, escrever um estudo estatístico sobre a influência do http://www.corriere.it/Piccoli/home.shtml na literatura contemporânea italiana. Segunda citação ao jornalzinho para crianças que leio essa semana, antes Eco.

2 comentários:

ê. disse...

demais.
acabei de ler o barão nas árvores.

MC disse...

Que lindo!

Comecei a ler a série do barão em italiano, com o Visconte Partido ao Meio que é o primeiro livro, só que ficou difícil e acabei não lendo o resto.

Ele explica, justamente, como essas histórias surgiram: viu a imagem de um rapaz que não alcançava mais o chão, e o resto da história se desenvolveu a partir dessa imagem. E depois explica, aí, de como os quadrinhos foram importantes para conseguir "ver" tais coisas.