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segunda-feira, 16 de julho de 2007

Sob os auspícios de Aires (das sobras, n. 2)

2. O romancista

Outro dia vi descer do ônibus um jovem escritor de inícios de século XX. Cachecol leve no pescoço. Ainda não fazia esse frio de ontem, que pode ser o de amanhã. Era dia anoitecido, mas coisa de agora há pouco e tinha havido sol. Tudo bem, as calças deviam ser de 1968, pernas que resistiam a Lee, talvez até mesmo a máquina de escrever que empunhava, por mais que a empunhasse vermelha, para mim datava de inícios de séculos. E supus que fosse o XX. Não que existissem máquinas de escrever em outros inícios de séculos, mas não houvesse máquina em cena, no mais, o gesto. E os olhos claros. Não que me interessem, geralmente me perco em olhos escuros. Esses eram ou de guerrilheiro ou de romancista. Me encantam os guerrilheiros e os romancistas. Preferi a segunda opção, ainda mais quando ele desceu do ônibus. Ando fatigada de maiúsculas, exclamações, e os passos largos me deram a impressão de quem cuida de frases longas, pontos-e-vírgulas, e sabe pontuar certas reticências.
(“Você provoca encontros estranhos”, me diz C. Como se ele esquecesse o dia em que o diabo lhe disse, em um cinema, que ele tinha os olhos de Proust.)

Meu tarô me dá três cartas compondo e me apontando para o ímpar. L’impairfait. Mesmo que eu pense em olhos claros – não esses, mas aqueles outros ou ainda outros, posto que vivo –, confirmei assim minha felicidade secreta.

Vita Nova desde que aluguei essa janela. Daquela bonequinha abrindo um polichinelo, me agrada os contornos e de me fazer me pensar em um quadro ou um livro. Desses que o meu romancista do ônibus escreveria, sobre a menina na janela. Evidentemente.

Seria mais romântica com uma máquina de escrever? Mais doída, talvez. Mais prolixa, também; luzes demais cansam a vista e me conduzem à brevidade.

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