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domingo, 24 de maio de 2009

Estética e Ideologia: uma leitura dos códigos visuais da juventude de direita (2)

Reconhecimento visual


O soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe; leva os sinais naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho; seu corpo é o brasão de sua força e de sua valentia... (FOUCAULT, p. 125).

Assim como é necessário conhecer os diferentes sentidos atribuídos às palavras de uma língua para entendê-la em seus diferentes contextos, o reconhecimento dos significados de uma vestimenta depende do conhecimento dos sentidos atribuídos a ela por aquele que a veste. Um dos recursos do humor para caracterizar um personagem deslocado socialmente é fazer um personagem vestir-se com roupagens consideradas ridículas por determinado grupo social, época, ou até mesmo de forma a causar inconscientemente constrangimento ou ódio em determinado grupo (usar uniforme de um time em meio à torcida inimiga, vestir vermelho em frente a um touro etc.). Grande parte das pessoas confunde tendências de grupos, muitas vezes até rivais, como sendo uma coisa só por não entenderem seus códigos, generalizando e/ou esquecendo de aspectos específicos.
O título da notícia abaixo, escrita anonimamente em 18 de abril de 2004, encontrado no endereço eletrônico do grupo de Mídia Independente (http://www.midiaindependente.org/) pode parecer estranho para a maioria da população:

Carecas fascistas armados perseguem skinheads comunistas nas ruas de Fortaleza

“Carecas fascistas” são também conhecidos como skinheads de direita. Aliás, geralmente o que se pensa ao ouvirmos falar de skinheads é exatamente sua ligação com a extrema-direita. Essa perseguição, portanto, é de skinhead contra skinhead. A existência de um movimento de esquerda “careca” aumenta a necessidade de se conhecer as nuances entre esses grupos. Já no caso do MV-Brasil, muita gente que se filia ao pensamento de esquerda considera como tal esse grupo. Mas militantes de partidos de esquerda ou movimentos libertários os identificam como direitistas ao mesmo tempo que expressões desse movimento são apropriadas e aprovadas por grupos de direita como os integralistas.
Um exemplo dessa confusa definição ideológica do grupo é a comunidade do MV-Brasil, no conhecido site de relacionamentos Orkut. Lá, há membros desta que se posicionam politicamente como “esquerda”, “libertário ao extremo”, “esquerda-liberal” ao lado de pessoas que identificam-se com práticas de direita, inclusive “carecas”. Aqueles de comunidades como Carecas do Brasil, Skinheads ou Integralismo se definem na maioria praticamente absoluta dos casos como “conservador de direita” ou “extrema-direita”.
Em seu livro sobre os usos da linguagem não-verbal socialmente, Wheldall também confirma a vestimenta como comunicativa, e ele cita:
A roupa que vestimos e o modo como as usamos, os ornamentos com que nos enfeitamos, expressões de nosso rosto, os gestos que fazemos e até o modo como andamos – tudo isso são símbolos para o resto do mundo (ou pelo menos para o resto da nossa sociedade). Projetam a “imagem do nosso corpo”. (Polhemus, apud Wheldall, p. 83).

A camiseta t-shirt, que surgiu como uma veste transgressora (desde Marlon Brando em Um bonde chamado desejo e consolidada nas atitudes da juventude transviada de James Dean e companhia), pode ser usada, hoje, como canal publicitário, para logomarcas, afirmações políticas, homenagens, mensagens verbais ou não-verbais.
Se há trinta anos atrás, por exemplo, um jovem poderia ser abordado nas ruas e até ser preso por ter uma estampa do Che Guevara em sua blusa, atualmente isso está longe de acontecer, a estampa está na ordem do dia, ao lado de outros logotipos dos mais procurados. Com a diferença das gerações e as mudanças na conjuntura política, mudaram as significações, muitos dos símbolos reivindicados foram esvaziados pela repetição dos modismos e do próprio esvaziamento do espaço político.
Em seu livro Vigiar e Punir, Foucault dedica páginas ao corpo dos prisioneiros. Podemos pensar, à sua maneira, que o uniforme serve para domesticar o corpo (o “corpo dócil”), uma forma de tirar do indivíduo sua expressão social, reduzindo-o a um coletivo. No entanto, mesmo assim, vemos grupos que procuram a homogeneização do uniforme, de uma vestimenta obrigatória. Como demonstra o livro Psicologia de massas do fascismo, o uso dos símbolos, como insígnias, bandeiras e hinos serve a reforçar a idéia de unidade do grupo, a idéia de irmandade.
O uso do uniforme por esses grupos é bem similar às estratégias militaristas. O corpo do militar reflete a idéia de força, o que Foucault chamou de “retórica corporal da honra”. A diferença entre o uniforme militar e a vestimenta desses grupos está, justamente, na diferença: o militar espera distinguir-se, com medalhas e distintivos, insígnias, apontando a hierarquia. Quanto mais destacado o soldado, aumentam os ornamentos em sua roupa. Mas os grupos uniformizados que observamos, os skinheads e integralistas, dissolvem a hierarquia – que existe – na retórica da igualdade.
É preciso entender também, portanto, o porquê da existência de movimentos que se utilizam do vestuário como linguagem. Segundo Boaventura Santos, “temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza e a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, 2005, p.75). A criação de padrões de identificação num meio poderia ser vista como um modo de sobrevivência neste, seja imposto por ele ou como reação a ele. Tomemos, por exemplo, a seguinte história, já um tanto conhecida: na cidade de Manchester, na Inglaterra, havia uma população de mariposas claras que foram desaparecendo aos poucos enquanto crescia a quantidade de mariposas de tonalidade escura. Em pouco tempo, tornava-se raro encontrá-las na tonalidade clara. A vizinhança, em grande parte, passou a atribuir o escurecimento das mariposas ao impacto produzido pelas fábricas, pois esse fenômeno evolutivo coincidia com o momento que chamamos de “Revolução Industrial”, e a fuligem, oriunda das chaminés, tingiria tudo ao entorno, inclusive as mariposas. Até que o surgimento de uma outra hipótese, mais lógica, que é sustentada até hoje, diria que, num primeiro momento, as mariposas claras tiravam vantagem sobre as outras por se confundirem com os troncos das árvores, onde pousavam, que estava coberto por liquens. Essa camuflagem as impediam de serem encontradas pelos pássaros, seus predadores naturais, enquanto as escuras seriam presas fáceis para estes. Mas com a poluição, os liquens teriam morrido, e a situação se inverteu, favorecendo o mimetismo das mariposas escuras e, em pouco tempo, sua população aumentou enquanto as mariposas claras se destacavam sobre os troncos, sendo avistadas à distância por seus predadores.
Da mesma forma, usamos socialmente símbolos para nos absorvermos e/ou nos destacarmos na massa com variados objetivos. Observar as nuances dos padrões dos grupos e as formas que se evidenciam pode ser um instrumento de análise dessa biosfera dos movimentos sociais, onde mesmo o que é considerado normal pode ser visto como sintoma (o que “pega”, como diz Roland Barthes, é o que se engendra nas estruturas e porta-se como parte delas. E, aliás não é esse sistema social uma patologia?).

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