Quarta-feira saio do trabalho e caio de paraquedas em uma mostra do cinema latino-americano e árabe. Não tinha visto a programação e fui agraciada com o belo documentário-entrevista com Edward Said (1935-2003), intelectual palestino com cidadania americana.
Said fala da importância de reconhecer o outro em sua diferença – e essa derridiana aqui se sentiu em casa.
A história de Said, desde a sua ascendência multicultural à sua militância pela causa palestina visando um diálogo com Israel em que se reconheçam iguais pero em suas diferenças, é uma bela utopia no sentido Galeano da palavra.
Durante o filme, porém, muita gente saía, entediada com a longa conversa – só ele falava ou tocava piano. Bocejos meus e de amigos. As pessoas esperam um cinema-entretenimento, um Filme, não uma conferência. Matutava sobre a questão da escolha da linguagem do cineasta – poderia ser de outra maneira? Talvez, mas ele quis assim.
E esse filme me serviu de prólogo pro tema que segue.
Na mesma quarta-feira, a tuitosfera brasileira se agitava com o assunto #deznaarea. A falta de compreensão da linguagem HQ foi denunciada pelo caso de um livro adulto que se perdeu em meio a material paradidático para criancinhas de nove anos. O desconhecimento geral dos quadrinhos como possibilidade de linguagem também desvela o desconhecimento das noções de linguagens, as suas funções.
Tomemos o exemplo do filme de Said. Cinema é entretenimento, certo? Também. Cinema é, acima de tudo, uma linguagem que une imagem em movimento e – talvez – sons. Como aquele russo já enumerou há um tempão, cada enunciado linguístico apresenta uma função. Há videozinhos publicitários que só querem chamar a sua atenção. Aliás, essa função fatalmente conativa da linguagem pode ser considerada a predominante em nossa sociedade de hoje, mas isso é outra história1.
Já filmes como esse sobre o Said, centrados sobre a mensagem, tem uma função que nem sempre é a de divertir. Said era teórico literário, ali sua preocupação era direta.
Romances, poemas, quadrinhos, preocupados com a narrativa, simplesmente, estão mais pro lado da função referencial – que é a função do jornal, por exemplo – do que com o que é realmente literário. Nem tudo que é poema é poético.
O artístico, o literário, é o que se preocupa com o seu próprio código. Código é sempre uma regra, não é? E regras são arbitrárias, por muitas vezes autoritárias. Os fora-da-lei dos códigos linguísticos: a população excluída, que fala a mesma língua mas é considerada subcategoria humana. Mostrar que o signo linguístico é mais um construto ideológico – sendo gigolô das palavras, é mostrar que todas essas estruturas sociais são construções, não criações divinas. A linguaguem pode ser subversiva nesse ponto, sim2.
Isso já é tema batido nas universidades de Letras, mas não chega bem diluído no gosto popular. Por que eu insisto? Porque se todo tipo de LINGUAGEM pode exercer todas as funções, qualquer tipo de LINGUAGUEM pode ser grandioso, pode ser um texto crítico, pode ser filosófico, pode ser engajado.
O preconceito de que só o texto escrito em parágrafos coesos pode gerar pensamento despreza a música, o cinema, os quadrinhos como geradores de conhecimento e reflexão. E, no caso da função poética, é pelo estranho, pelo que parece torto, é que se desloca o aparentemente natural do cotidiano para apontar ali que a história é uma grande manipulação de fatos, que o normal é uma construção ideológica do poder. O poético desestrutura nossas noções de comum.
O mal-estar pela leitura de um livro « proibido » não desencadeou uma série de reflexões sobre o que é proibido? Não digo que aquele livro seja poético, mas digo que é poético o como as coisas aconteceram: não era para aquele livro estar ali. O poético é aquilo que não era para estar ali. São dos choques que a leitura provoca que nos faz colocar na pauta dos dias o que é tabu e o que é « verdade ».
(Acabando aqui, vejo o ótimo texto do Paulo Ramos e Waldomiro Vergueiro que saiu hoje na Folha >)
1Mais suína que a própria nova gripe, é o joguinho da nossa velha amiga publicidade. “Antes, havia uma incompatibilidade ética entre anunciar e exercer atividades, como na profissão médica, ou na educação. Hoje, propaga-se tudo, e a própria política é, em grande parte, subordinada às suas regras”. (SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. 2000)
2 Eu tinha que parar de comentar em blogs depois que me disseram que « você é uma das nossas comentaristas mais frequentes ». Mas eu sou incorrigível e adoro discutir alguma coisa quando gosto do que o autor escreveu / adoraparecer. Esse aí comentei no Blog do Arnaldo Branco.
O texto sobre a entrevista é o célebre “Gigolô das palavras”?
“A língua é fascista”, já dizia o Barthes, porque ela obriga a dizer as coisas. A literatura, como bem disse o Verissimo no Gigolô, permite que a gente quebre suas regras. E deixar que os múltiplos sentidos desfaçam a obrigação de só dizer o que se deve.
Além disso, tudo o que você escreve/filma/desenha pode ser usado contra você; daí que pouco importe a corrente ideológica, um texto pode ser usado apesar de quem o escreveu.
Autor bom é autor morto - e que a posteridade se encarregue de enterrá-lo de vez ou ressuscitá-lo para antologias ou homenagens póstumas.
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