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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O Conto do Pato

Quem escreve é José Ricardo da Silva Ramos, o Zé Ricardo*.

Essa quem me contou foi o Pato, meu velho amigo de rua.

“Jorge Irizipela era o jogador terror dos campos de futebol várzeas do morro. Tinha apenas uma função quando atuava: aterrorizar todos os agentes desportivos. Alto, forte, costas largas, bigodes mexicanos e cara de mau, o Jorge era temido por todos pela sua exuberância corporal. O povo das redondezas dizia que Jorge sempre foi o sujeito mais respeitado no futebol do morro, tanto pelos adversários como pelos parceiros.

Sempre depois de ter cumprido uma longa jornada de trabalho carregando centenas de sacos de 50 kilos de farinha e fubá, o Jorge entrava em campo, mais bêbado do que uma gambá, e aí o jogo se moldava segundo o seu jeito de jogar. Ele mesmo dava a saída e conduzia a bola até o seu destino final: o gol. Os adversários ao seu entorno fingiam ser driblados, simulavam confrontos, davam na pinta uma certa oposição, mas ai daquele que tocasse no Jorge ou roubasse o seu precioso objeto que levaria até o gol: a bola. Se por acaso acontecesse tal tragédia, o coitado autor de tal ato, já tinha o seu destino traçado: cemitério ou hospital. O goleiro adversário também era muito solicitado pelo Jorge, pois cabia-lhe a tarefa de fazer toda a pose defensiva, pois o Jorge não gostava de fazer gol fácil.

Desse modo, o Jorge aproveitando-se do seu prestígio corporal mandava no jogo, e o morro como um todo arrumava-se de acordo com as leis que o Jorge estabelecia quando jogava. Encarando todo o público com o seu típico mau humor, estipulava o tempo, o número de jogadores e o placar dos jogos.

Um dia, um tal de Cláudio, um dos parentes do Cabrita apareceu no campo do morro. O garoto metido a jogar bem logo conseguiu uma vaga no time adversário da equipe do Jorge. Ele estreante no morro não sabia do contrato entre os jogadores quando o marombeiro trabalhador do Fubá Granfino estava presente. E, logo depois que o Jorge iniciou o jogo, o rapaz mascarado a jogador habilidoso, toma-lhe a bola dos seus pés, corre todo o terreno do time oponente e faz um gol e ainda sai tirando marra de Maradona. Notamos que, depois desse fato, o céu enegreceu-se, as nuvens surgiram pesadas anunciando uma tempestade, todo o cenário do morro aquietou-se e os seres vivos e até os mortos calaram-se diante de tal proeza, da extrema petulância do pobre rapaz. A galera presente abaixou as suas cabeças, colocou as mãos nas testas e começou a cochichar de orelha em orelha com a língua entre os dentes:

__ Temos um enterro amanhã, rapaziada. O velório de um colega que apenas pegou a preciosa bola do Jorge. Este rapaz não vai durar mais do que cinco minutos. Ele é louco! Ele está perdido! Quem vai anunciar a morte do garoto a sua família? Mais uma vítima do Jorge! Por que não avisaram ao menino que aqui o Jorge é a lei? Meu Deus, você viu o que ele fez?

O Jorge mesmo se encarregou de pegar a bola dentro do gol. Colocou-a debaixo do braço e a levou até o meio do campo. Sentimos o seu semblante alterado, meio perturbado pela audácia do jovem estreante. Todos se voltaram para a fala do Jorge quando fixou os seus olhos naquele que havia cometido tal barbaridade:

___ Você machucou o Jorge. compenetradamente disse o Jorge apontando para um dos seus pés descalço.

___ Que isso Jorge? Eu tire a bola legal! Respondeu o Cláudio.

___ Você machucou o Jorge. Isso não se faz. Calmamente reafirmou o Jorge.

___ Que isso Jorge? A galera viu. Eu tô jogando legal, Jorge. Retrucava Cláudio.

___ A rapaziada viu que você machucou o Jorge, e isso não se faz. Balançava a cabeça o Jorge, de um lado para o outro, contrariado com audácia do pobre rapaz.

A galera já se preparava, apreensiva com o socorro emergente do moço. Este, já alertado pela turma fugia do domínio territorial do Jorge no campo. O Jorge, por sua vez, continuou jogando sozinho a partida. A multidão do morro esperava ansiosamente o trágico desfecho fúnebre até que, após um gol do Jorge, o goleiro arremessa a bola na lateral direita para o Cláudio, quando surgiu rependinamente quem? no mesmo espaço do campo? Quem? O Jorge.

___ É agora! Previu a galera já impaciente...

E foi. O Jorge dá uma banda no Cláudio que o joga a mais de cinco metros de altura. Essa banda, que impressionou mais uma vez toda a platéia deu-lhe a oportunidade de rever o Jorge nos seus tempos de glória, quando ele divertia a galera com as suas brutalidades. O que dava o peso da graça ao jogo lá no morro. Sobre o que aconteceu com o Cláudio, o morro teve que se contentar apenas com o hospital.

___ O Jorge quando não mata pelo menos desinfeta. Esse não tira mais onda no morro. Disse um amigo nosso, o Frei de Barro, que, alegre, estava indo visitar o amigo Cláudio no hospital....”

*Professor de Educação Física da UFRRJ. Os jogos e a linguagem deles, assim como a comunhão linguística que eles proporcionam sempre fizeram parte de suas pasquisas, das quais participo desde pequena, como cobaia, redatora, leitora.

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