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quarta-feira, 10 de março de 2010

It's a wonderful life

Dear landlord,




Please don’t put a price on my soul.



My burden is heavy,
My dreams are beyond control.
(Bob Dylan)




It's a Wonderful lifeou o nosso A Felicidade Não se Compra, clássico de Natal de 1946, é daqueles filmes retomados em diversos outros, citados, parodiados. O anjo que vem do céu, a vida revista, o que aconteceria se você não existisse, o mal encarnado em um rico avarento e velho. Essa última referência já é mais antiga, a dickensoniana é a mais evidente. Coisa bem século XIX, Revolução Industrial com cidades crescendo e número de gente sem emprego idem. 


O velho Scrooge de Frank Capra se chama Henry Potter (Lionel Barrymore), grande proprietário, detém boa parte dos empreendimentos da pequena Bedford Falls. Lucra até com alugueis dos sujos cortiços onde mora a população pobre da cidade. Nosso herói, George Bailey, é interpretado pelo herói dos heróis-sem-superpoderes-mas-com-dignidade, James Stewart. Esse Hamlet é assombrado pelo fantasma da herança de seu pai, que o condena a tomar seu lugar na Bailey Buildind and Loan Association, fazendo-o se desfazer dos sonhos de partir da entediante cidadezinha. 

O mal encarnado, Potter, quer apenas dominar a cidade, e tenta fazer com que os Bailey desistam de seu negócio. A luta de George e família é pela casa própria para todos os cidadãos de Bedford Falls. E pelo emprego, também. Ao saber que um amigo queria abrir uma grande indústria de fabricação de plástico a partir da soja (!), ideia mesma do George (mas parece que já tinham pensado nisso, mas talvez só agora dê certo), sugere a esse amigo de empreendê-la em sua cidadezinha, onde o desemprego fazia muitas vítimas desde a Grande Depressão.

Bedford Falls ganha um conjunto habitacional com belas casinhas que todos pagarão em leves prestações; os Bailey não querem lucro, o lucro nojento do Potter. Esse, que incorpora o grande mal, o banqueiro, quer porque quer destruir a felicidade dos outros; obviamente, o que ele não pode comprar. Simples assim.

Não é tão simples assim no nosso mundo, evidentemente. Em um diálogo que me pareceu surreal, um funcionário de Potter lhe dizia: "Eles estão construindo belas casinhas no parque onde caçávamos", e sugeria que o chefe fizesse algo para impedi-los. Ali, havia uma divisão clara entre bem e mal. Mas ontem ouvi no rádio uma frase surreal assim. Em comentário ao fato da prefeitura do Rio estar gastando verbas públicas na recuperação de conjuntos habitacionais (projeto Conjunto Maravilha), o jornalista faz uma "reflexão", que joga para o público: "'Nós' pagamos condomínio para fazer reforma em 'nossos prédios". É, cara pálida, você provavelmente teme que roubem os impostos que "nós" pagamos para dar àqueles que não pagam nada. Também deve olhar com nojo as mulheres, crianças e velhos que moram nas calçadas do teu trabalho. Que "nós" são esses? Há muitos outros "nós" nessa cidade, e poucos se cruzam.


Os 600 moradores do Amarelinho, o tal conjunto a ser reformado, provavelmente, não pagavam condomínio. 


Quantos brasileiros podem fazê-lo? Dos 57 milhões de domicílios brasileiros, apenas 17% são alugados. No entanto, quem mora na rua não participa das estatísticas.


Hoje, um choque de ordem no Leme já demoliu duas casas irregulares. Para onde vão seus moradores? 
Se formos otimistas, eles encontrarão algum conjunto social na periferia, engrossando a massa que se locomove com dificuldade todas as manhãs nos ônibus, trens, metrô. 


E o que fazer dos espaços vazios do centro da cidade, dos prédios abandonados? Esperar que seu preço caia o suficiente para economizar numa bela reforma e, assim, transformar em bairro cool? 


Silvio Caccia Bava, no editorial do Le Monde Diplomatique Brasil desse mês, lembra que soluções para melhoria das cidades passam, justamente, pela erradicação da pobreza, que envolve moradias dignas para todos, acesso à mobilidade. E que há soluções bem possíveis, dependendo apenas da vontade política. Afinal, 13 trilhões foram empregados para salvar o sistema financeiro internacional, o que teria sido suficiente para uma revolução.
O mundo, irreversivelmente urbano, irreversivelmente humano, continua dependendo de poucos Potters. 


(Outro filme sobre o assunto é Hiato, sobre o qual tinha comentado aqui)


"Se morar é um direito, ocupar é dever"

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