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sexta-feira, 25 de junho de 2010

a lição da naturalidade

Quando aos seis anos de idade comecei a ter certas dúvidas, mamãe me emprestou um livro de capa vermelho-maravilha, grandão, mas muito prático. Era um livro com respostas da Marta Suplicy às cartas de seus caros telespectadores da TV Mulher. Lia e relia aquele livro assim como as enciclopédias e o dicionário. Um manual bem interessante para mim, na época e até bem tarde. Um dos conselhos da Marta, aliás, era sobre como os pais e professores deveriam se comportar com perguntas de seus filhos ou quando a criançada começasse a falar "merda", "cu", "escroto". Aja com naturalidade, ela explicava. Diga ao seu filho o que é merda, o que é cu, o que é escroto. Se ficar ofendido, só faz a criança gostar mais da palavra nova.

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Esse vídeo mostra o grande descompasso entre a mídia impressa e televisiva. Enquanto diversos jornais e revistas já fizeram matérias sobre a Cachalote, a aguardada graphic novel de Rafael Coutinho e Daniel Galera, a jornalista encena uma grande surpresa ao "descobrir" quadrinhos que seriam de qualidade e ainda por cima não infantis. (A gente aqui vez ou outra fala disso, mas a gente é obcecada por esse tema)

Claro, como bem lembrou o escritor João Paulo Cuenca mais tarde, a função de um programa como tal é de explicar melhor para o grande público os novos fenômenos culturais. Que o telespectador vá depois buscar alhures maiores informações, é outra história. E isso é muito bom.

Aliás, era um escritor falando com naturalidade de um gênero bastardo. A apresentadora continuava a enfatizar com adversativas e exclamações sua surpresa: agora ela pode dizer que vai ler quadrinhos e com interesse. Alguém detentor do crachá de escritor/artista, autorizava a inserção daquele objeto no campo das artes.

Enquanto o escritor explicitava a qualidade do trabalho, da história (já é óbvio para ele que quadrinhos não precisam ser para crianças), outro convidado, Emílio Santiago, associou imediatamente a discussão ao problema do livro, livro enquanto livro, sem ser quadrinho ou qualquer gênero que seja, livros que não são lidos no Brasil. Não parecia ter passado pela cabeça dele essa diferença etária ou étnica (povo diferente, esse que lê quadrinho e já é maior de idade), mas sim o problema dos livros serem caros por aqui.

Quadrinhos de qualquer tipo ainda é a imagem de literatura fácil, ligada ao público juvenil, mas não é esse motivo que impediria a geração que hoje chega aos 50 ou 60 de continuar acompanhando seus quadrinhos da infância. Quem escreve aos jornais reclamando da mudança das tirinhas do Globo ou se irritando com a "nova fase" do Laerte não são os leitores dos cadernos terminados em inho. Essa separação do que se lê é feita unicamente pelas prateleiras, pelos editores, pelos especialistas, pelos professores (é, Sílvia Abreu, besteira sua achar que essa sua ex-aluna aqui não poderia ler Feliz Ano Velho ou Cem anos de solidão aos treze). Os mesmos que dizem que isso é coisa de criança também dizem o que não é para elas, são aqueles que sacralizam o livro e ainda hierarquizam o acesso à cultura.

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Na verdade, na verdade, a criança não está nem aí para o que significa cu, merda, escroto. Quem fica se fodendo preocupado com isso sempre é a professora.

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Fundamental toda essa movimentação em torno da Cachalote. Essa troca escritor/artista plástico no campo dos quadrinhos dessacraliza um pouco essa figura do artista ao mesmo tempo que levanta a bola da nona arte. Terça estaremos lá!

UPDATE: veja também uma série de posts do meu amigo oulipiano Adilson Jardim sobre quadrinhos e escola, entre outros assuntos.

2 comentários:

Porco disse...

engraçado que eu vi o Cuenca falando sobre o Umbigo Sem Fundo no mesmo programa e não lembro dessa surpresa toda.

MC disse...

Também não houve quando ele falou sobre a Kiki. Mas tanto Umbigo quanto Kiki são gringos, né. Gringos sabem o que fazem.