Diz que a professorinha francesinha, lá nos confins da África Negra, repetia, de cor, a lição de História, em seu vestido de chita e giz à mão:
"Descendemos dos gauleses"i.
A gente não fica lá muito atrás com o mito da união estabelecida e estável de três povos que só se distinguiriam pelas cores diferentesii. Enquanto a francesinha missionária levava sua civilização franco-gaulesa para o estrangeiro como algo tão natural, a nossa aperta junto ao peito sua bíblia pedagógica e desbrava os territórios violentos das grandes cidades, diariamente.
Um leão por dia, elas matam; leões do tráfico, leões sem pais, leoas grávidas aos doze.
Bravas professorinhas. Elas salvarão o mundo da selvageria, com suas preces e orações subordinadas.
Encontrei uma hoje, na faixa de gaza das relações acadêmicas. O tema era literatura contemporânea e novas mídias. O tema virou na curva da literatura infantil, pegou a via da leitura na escola, desceu para as diretrizes de compras de livros para as escolas e tropeçou no desânimo do fracasso escolar.
E ficou por ali naquela conversa de sempre: alunos são uns seres sem luz, que não querem nada.
– Você não quer aprender? Não quer buscar conhecimento? – cita ela a conversa com um menino.
– Eu, não, professora. Meu pai é pedreiro e ganha mais que você – seu aluno lhe respondeu.
– Mas seu pai não tem férias, seu pai tem que trabalhar demais, seu pai tem uma vida triste e não pode ficar doente – replicou.
Enquanto a conversa não engatava para outros rumos, escorreguei na mais profunda indignação. Como pode uma autoridade escolar tomar esse papel tão a sério e se afirmar como superior àquele aluno, àquela família?
Um ou mais leões por dia, elas matam. Quantas almas já salvaram, as professorinhas?
Uma vez contestei um discurso ouvido por aí sobre o professor estar obsoleto. Com tanta tecnologia nova, aquele que não as domina está fadado a ser visto como ultrapassado por seus alunos. Discordei, posto que parecia que a culpa recaía sobre o professor. O tal esquecera que nossos professores não recebem incentivos para se atualizarem.
Mas o problema é mais embaixo. Ele tinha, de certa forma, razão. Não digo do ponto de vista das novas tecnologias. Não é apenas o salário que está defasado. Nós, professorinhas, estamos defasadas em relação ao quotidiano de nossos alunos e de suas linguagens. Defasadas por continuarmos a acreditar que nossa “cultura”, nosso “conhecimento”, é tábua de salvação de quem quer que seja.
Esse sistema educacional é anacrônico. Acreditar-se “educador” é acreditar-se um missionário de uma civilização em vias de extinção. É preciso, de fato, entender o processo educativo como uma missão religiosa, sim, mas de uma comunhão conjunta, em que o professor é apenas mais um ali. Não ser apenas aquele “que, de repente, aprende”, mas aquele que está sempre aberto e disposto a aceitar o olhar desse estrangeiro, que é sitematicamente obrigado a seguir ordens de alguém de uma “casta” superior e sagrada, que mata não sei quantos leões por dia e se alimenta de autocomiseração.
Faziam bem, alguns povos, que devoravam professorinhas.
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i“Nos ancêtres, les Gaulois”. O primeiro engano seria já o uso do termo gaulês: eram diversos povos que partilhavam línguas do ramo celta; o segundo, gaulês era um termo utilizado pelo “inimigo”: Roma.
ii … que, somadas, deram outras cores, outros nomes de cor...
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